domingo, 3 de junho de 2007

Madeleine: Jornalismo do Vazio


O que é jornalismo? Que acontecimentos devem ser constituidos notícia?


Entre os valores-notícia basilares para a validação de um acontecimento um deles é comum a todos os teóricos do jornalismo: a novidade.



Sem novidade, sem factor surpresa, sem acontecimentos que extravasem a rotina, sem actualidade, o jornalismo perde todo o seu propósito e razão de existir.



Recuemos até ao dia 3 de Maio de 2007, dia do desaparecimento de Madeleine McCann.



Jornalismo Hollywoodesco


O desaparecimento da pequena Madeleine McCann constituiu aquilo a que Mar de Fontcuberta define como «what-a-story», um acontecimento que faz fervilhar e mobilizar redacções inteiras, um acontecimento não previsto e que constitui uma ruptura com os padrões normais da sociedade ocidental.


Segundo Nélson Traquina «embora o jornalismo inclua muita rotina, o inesperado é o momento mágico e incontornável de qualquer filme de Hollywood».



A notícia criada em volta de Maddie foi um autêntico ícone cinematográfico, digna de um qualquer argumento de Hollywood, construída com base num jogo de palavras com conotações ambivalentes no nosso imaginário.



A pacata Aldeia da Luz, terra de pescadores humildes e tingida pelo azul do mar, vê-se, subitamente, confrontada com um crime sórdido e obscuro. Uma criança inocente e frágil é arrancada aos seus pais, no silêncio da noite, por um psicopata desconhecido. Os pais da criança jantam tranquilamente a metros do local do crime até, minutos depois, se confrontarem com a terrível tragédia. Não há testemunhas, não há pistas ou indícios do raptor.



A narrativa usada para reportar o caso Maddie em tudo foi buscar inspiração à dramaturgia ficcional. Trata-se de um jornalismo centrado nos protagonistas e não na acção, assente no uso de arquétipos e que, através de uma perspectiva maniqueísta, relata o acontecimento como que se de um confronto de forças (bem contra o mal) se tratasse.


O drama da pequena Maddie permite usar a fórmula encontrada por Vladimir Propp nos contos populares: estórias com heróis (Kate e Gerry McCann), lutando por objectos ou objectivos (Madeleine), coadjuvantes (policia portuguesa e britânica, civis anónimos, populares) e oponentes (redes pedófilas internacionais)
Este jogo semiótico que se faz valer da força das palavras para enfatizar o acontecimento/noticia só tem servido para desvirtuar a real função informativa do jornalismo e aproximá-lo do lirismo barroco.


Jornalismo do Directo

Tem sido recorrente no caso Madeleine o uso do directo para fazer o ponto da situação.


Segundo Nélson Traquina «Os membros da comunidade jornalística querem noticias tão quentes quanto possível» de preferência «em primeira mão». «O valor do imediatismo dá primazia, nesta era do audiovisual, ao directo estado puro do imediatismo».


É usual nos meios de comunicação dizer-se que a reportagem é o género nobre do jornalismo. Então porque é que na cobertura do caso Maddie, que tantos jornalistas destacou para o Algarve, se opta insistentemente pelo directo televisivo?


A resposta é: não há nada para reportar. E não havendo nada que mereça uma reportagem é preferível apontar a câmara para o enviado especial e deixá-lo usar a retórica e repetir-se até à exaustão. De resto, quando os directos se centram essencialmente no repórter é sinal de que não há sinais palpáveis de noticias. No fundo, entramos naquilo que Jean Baudrillard apelida de simulacro, em que o jornalismo «finge ter o que não tem» e «em vez de comunicar, esgota-se na encenação da comunicação» e «é cada vez mais invadido por esta espécie de conteúdo fantasma, de transplantação homeopática, de sonho acordado da comunicação».


E nisso o caso Madeleine tem sido paradigmático, no Jornalismo do Não-Acontecimento. Directos que Miguel Sousa Tavares (Expresso, 21 Maio) diz constituírem um «luxo de ter noticias a dizer que não se passou nada e ainda chamar a isso jornalismo» e ainda regressar «três vezes à Praia da Luz para que os enviados especiais façam novo ponto da situação - que é exactamente o mesmo que às 21.15, do que era às 20:40 e do que era às 20:03».


Os directos servem para conferir autenticidade à história e dão, ao espectador, a sensação voyeurista de estar permanentemente em cima do acontecimento, quase tendo acesso privilegiado à informação.


O rapto da menina, o desespero dos pais, as buscas da polícia, a mobilização de familiares e os primeiros suspeitos são, até este momento, os únicos factos sustentáveis, o resto não passou de especulação jornalística.


Agenda Mediática

Os jornalistas, nomeadamente os estrangeiros, estão já a desmobilizar da Praia da Luz devido à escassez de desenvolvimentos.


Tem sido notório o desespero de Jerry e Kate McCann para manter este assunto na Agenda Mediática.


Devidamente assessorado, o Casal McCan tem repartido o seu tempo em «photo-opportunities» e «quoting sentences», fazendo-se acompanhar pelo urso de peluche da filha e organizando missas na Aldeia da Luz, em Fátima e até uma sessão com o Papa de forma a manter o interesse pela história.


Ana Caldeira (Público, 31 Maio) refere que o caso Maddie é um autêntico «case study» sobre «a utilização dos media» e para a «constatação do poder real da comunicação social para manter um qualquer assunto nas agendas mediáticas e até mesmo agindo como um verdadeiro agente de pressão».


Acontece porém que os media vivem de acontecimentos e, por mais forte que o lobby dos McCann consiga ser, a televisão será seduzida por outros acontecimentos que constituam aquilo que o discurso jornalístico realmente pretende: a realidade, a veracidade e, sobretudo, a actualidade.


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4 comentários:

  1. Muito e muito bem! Um texto ordenado, conciso, captando os vários ângulos de análise; buscando as referências descodificadoras que ajudam ainda a perceber mais o que vemos à frente com base no que se tapa por trás.

    Beijinhos

    Maria João Barreto

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  2. JOÃO PINTO, um belo e abençoado dia. Muito sucesso para o blog “Os Amigos do Presidente”. Em relação às novidades do blog Desabafo País, hoje estamos divulgando o apoio do Governador do Estado do Ceará, CID GOMES a prefeita de Fortaleza, LUIZINNE LINS, para concorrer à reeleição em 2008. O jornalista Lustosa da Costa fala sobre o Festival da cafajestade das CPI’s, a humilhação do irmão do presidente Lula e a homenagem a Ariano Suassuna. Também você vai ler: “Chávez faz visita surpresa a Fidel Castro em Cuba”; o “futuro dos Palestinos”; o “Cinismo e Democracia”, escrito por Eron Bezerra e “A Rede Globo quer derrubar Lula na marra”, são os destaques. Acesse e conheça nosso trabalho: http://desabafopais.blogspot.com . Daniel Pearl.

    João Pinto, mande-nos suas matérias, que teremos o maior prazer em divulgá-las no blog Desabafo País(Brasil). Um forte abraço.

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  3. Seus comentários não ajudam em nada a busca pela maddie. Bem se vê que vc não deve ter nenhum vinculo com a familia Mccann e provavelmente jamais passou por algum sofrimento.
    Fique com Deus

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  4. Cara Anne Marie agradeço o seu comentário e compreendo que a minha análise, pelo distanciamento emocional que apresenta, lhe cause alguma estranheza.
    Embora tenha sido frio na argumentação qualquer dos factos que apresentei são facilmente constatáveis. Relativamente ao meu sofrimento, como qualquer humano já passei por ele e garanto-lhe que os comentários que teci relativamente ao caso Maddie não são uma tentativa de subvalorizar o desaparecimento, mas sim alertar os media para que façam a cobertura dos casos de crianças portuguesas, pertencentes a classes inferiores, da mesma forma que cobriram o da pequena Maddie.

    Exigir um tratamento equitativo aos media não me parece passível de condenação.

    Uma vez mais obrigado pela sua participação

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